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Entrevista de Marcelo Gargaglione a Sebastião Edson Macedo

 

SEM: Eu queria começar a entrevista te perguntando como você situa um trabalho expresso através de uma música que não é convencional dentro do panorama cultural atual, não digo brasileiro, mas em termos de conjuntura. Como a música de na mesma situação de blake se coloca diante das demais expressões estéticas do momento?


MG: Com um grande sentimento de inadequação, pois existe uma série de imposições mercadológicas que nivelam profundamente por baixo o nível das produções artísticas. Problema que não é exclusividade do Brasil. Como podemos situar essa música diante de um panorama onde o único propósito é o objetivo comercial mais torpe possível? É uma ótima pergunta. O que posso dizer é que as pessoas que estão por trás dessas estruturas não têm recursos intelectuais para entender o que seja uma obra de arte, no caso de música, o que é desenvolvido com erudição e uma série de critérios. Falta o mínimo de refinamento para isso. São pessoas que estabelecem uma relação com arte leviana. Ainda falando especificamente a respeito dessa área, lamento demais que no momento só exista espaço para os inúmeros farsantes que são considerados “artistas”, sejam eles “fabricados” ou não. Existe um gueto sim, mas o gueto para a inteligência, o resto é mainstream, é show business, utilizando o anglicismo das majors. A nossa música se opõe a tudo isso radicalmente, mas sem panfletarismos. Por suas características, pelas escolhas estéticas que foram idealizadas, pela relação criteriosa que ela estabelece com outras expressões artísticas, como cinema, literatura e artes plásticas. Mas a questão é complexa. As grandes corporações midiáticas, por exemplo, dialogam muito bem com as indústrias que trabalham com arte, impondo seus esquemas manipulativos e toda a sorte de “produtos” de baixíssima qualidade ou mesmo aqueles que são muito bem “maquiados”. Uma das conseqüências disso é o processo de imbecilização coletiva que aí está instalado. O discernimento crítico acaba sendo praticamente inexistente. Poucos percebem com lucidez a diferença entre arte e engodo. Lembro que uma produção de arte pode influenciar uma série de aspectos comportamentais. É claro que tudo isso está inserido num contexto mais amplo. A falência do sistema educacional, a falta de alternativas no campo político, as enormes desigualdades sociais, o caos formado, ou seja, uma sociedade corrompida e muito doente, que através de sua classe média ignóbil se revela majoritariamente neofascista e conivente com as nefastas intervenções ultraliberais, apoiando também os crimes praticados pela extrema-direita, entre eles o racismo, a homofobia e a tortura. Um neofascismo protagonizado por boçais, assassinos, psicopatas, criminosos de todos os tipos, e aí podemos incluir os falsos religiosos e os ultraconservadores hipócritas, que na verdade colocam em prática, sigilosamente, perversões grotescas. Vivemos numa falsa democracia. Um país que é recordista no número de homicídios no mundo. Um país autoritário, desigual, reacionário e misógino. Precisamos encontrar alguma saída. Mas não consigo vislumbrar nada. É terrível constatar que países como, por exemplo, Canadá e Finlândia, alcançaram altos níveis de desenvolvimento humano, e enquanto isso fracassamos. É óbvio que tenho a compreensão de que os processos de formação dessas nações foram outros, mas eles souberam desenvolver sistemas educacionais sofisticados e eficazes. Como professor não posso deixar de afirmar que foram poucos os momentos da história brasileira em que não tivemos uma educação elitizada e excludente. Esse problema já era constatado no período colonial, através da educação jesuítica, e não passou por modificações quando foi estabelecida a Reforma Pombalina. Ao longo do período imperial não ocorreria nenhuma mudança que permitisse que a população em geral pudesse ter acesso à educação de qualidade. É vergonhoso constatar que somente no início do século XX surgiria a primeira universidade do Brasil.
Existiram apenas três oportunidades de reverter esses equívocos, todas também no século XX, caracterizadas por tentativas de implementação de propostas educacionais arrojadas, libertárias e democráticas: o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, redigido por nomes como Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e Lourenço Filho, os métodos de alfabetização de Paulo Freire, e o projeto de educação popular de Darcy Ribeiro. E agora presenciamos vigaristas ignorantes, como falsos filósofos e outras aberrações, destruindo os ideais dos nossos maiores educadores.
Essa falência educacional, que está relacionada aos interesses políticos e econômicos mais escusos, impede o desenvolvimento intelectual da população, no que diz respeito à percepção das diferenças que existem entre o que é uma obra de arte e o que não passa de um produto comercial de péssima qualidade, planejado pela indústria cultural com o intuito de facilitar a manipulação das massas.

Indico a leitura das obras de filósofos como Theodor Adorno, Max Horkheimer, Zygmunt Bauman e Noam Chomsky, que desenvolveram estudos fundamentais, relacionados ao que acabei de expor a você.

 


SEM: Que outros paralelismos o teu trabalho comporta? Você fala de um diálogo com uma referência da poesia portuguesa contemporânea, que no caso é a poesia de Fiama, você fala de uma postura mercadológica em relação à música, você fala de uma escolha estética em detrimento de outra ou outras. Na verdade estou querendo pensar com você que paralelos mais o teu trabalho evoca e se existe um ponto para onde eles convergem...


MG: Acho que a sua análise foi perfeita. Não consigo no momento pensar em outros paralelismos. Você já citou os principais.


SEM: É difícil falar sobre a tua música? Qual é a dificuldade que você detecta como principal, como um divisor de águas, sendo a música já uma linguagem que por si mesma não se responde...


MG: Eu creio que é difícil falar a respeito da minha música a partir do momento em que ela se confunde com a minha própria vida. A partir do momento em que eu depositei nessa música muitas das dores, muitas das inquietações e experiências difíceis que vivi, a dificuldade de lidar com o mundo da forma como ele se apresenta, com todos esses absurdos, com essa incomunicabilidade nas relações humanas. Esse mundo conturbado, hostil, enfim, desumanizado. Mas posso afirmar que é uma música que apresenta elementos de existencialismo. As influências que tive de Jean-Paul Sartre, ou Albert Camus, que curiosamente rejeitava o rótulo de existencialista.


SEM: Eu queria que você falasse um pouco sobre o teu trabalho de voz, trabalho que evidencia uma grande versatilidade. Como você pensa essa voz, como ela é trabalhada, como ela se situa dentro de um CD que brinca entre o heterogêneo e o homogêneo?


MG: Procurei adequar o meu canto às exigências dos textos, encontrar a medida correta. Muitas pessoas acabaram detectando um certo caráter cênico no trabalho que desenvolvi. Mas o fundamental é que teria que existir um enorme rigor estético, estive atento a esse fator o tempo inteiro, foi interessante criar uma série de nuances. E é claro que também procurei utilizar recursos técnicos.


SEM: A tua interpretação transita entre o lúdico, o recitativo, até o grito, até o espasmo, até o melódico no sentido tradicional e o melódico, por assim dizer, século XX. Você a desenvolve de uma forma extremamente curiosa, por que é possível não só pensar em imagens evocadas pela própria construção da música, como evocar uma teatralidade da interpretação, um trânsito de personas pelos vários registros vocais. Como é esse trabalho no CD? Como isso se coloca no CD? Como isso se coloca na música? Que intenções? Que jogo está sendo feito através disso?


MG: As nossas ligações com o chamado cinema de autor e a ópera talvez expliquem o que você observou em minha interpretação. Faço essa análise sob determinadas perspectivas estéticas. Além disso, sempre estive atento ao trabalho dos grandes intérpretes. Acho que buscamos o equilíbrio necessário para expor todos aqueles estados de vida presentes em nossas criações, as dinâmicas que eram adequadas. É interessante comentar que nunca tivemos intenções performáticas, isso é curioso diante das observações que já foram feitas por pessoas que ouviram o disco. Claro que a subjetividade é um elemento decisivo, é um fator que talvez estabeleça um certo jogo cênico, mas não deixa de se unir à técnica vocal. Diria até que somos “cerebrais” quando organizamos as ideias que foram pensadas no momento inicial do processo de composição. A direção musical do Luis também foi fundamental para obtermos esse resultado. Aproveito para também mencionar a imensa contribuição dos extraordinários músicos que trabalharam conosco, Luizão Bastos e Michael Machado.


SEM: Pensando um pouco no impacto que a tua música tem sobre o ouvinte comum, que está acostumado a consumir um produto formatado e de fácil digestão, ela se coloca fora do alcance desse ouvinte. Como você pensa a receptividade desse outro, por exemplo, tanto no tema “um outro” como num sentido mais geral? Que diálogos você está estabelecendo com a recepção do teu trabalho? E aí se inclui a crítica, e aí se inclui o ouvinte preparado, e aí se encontra o ouvinte despreparado: Eles estão todos juntos ao mesmo tempo...


MG: O público comum talvez não possa identificar certos aspectos estilísticos em nossa música. Mas isso não significa que a interlocução seja inviável. Concordava com o Luizão Bastos quando ele dizia que se o acesso da população em geral a trabalhos verdadeiramente artísticos fosse democrático, haveria alguma resposta. As pessoas que vivem massacradas, em função das injustiças sociais criminosas que existem nesse país, quando têm algum contato com música erudita, por exemplo, tentam na maioria das vezes buscar algum entendimento, alguma interação. A falta de estímulos e oportunidades acaba inviabilizando tudo. O problema maior é o chamado público comum proveniente da classe média. Esse muitas vezes é passivo, aceita com obediência a impressionante quantidade de lixo que é imposta pelo mercado. Observamos também nesse momento o fenômeno dos Haters, insignificantes, caracterizados por uma boçalidade risível. O que posso dizer é que não gostaria de restringir a minha música somente a um tipo de público privilegiado pela erudição. São as perversidades do mercado que acabam impondo isso.


SEM: Você fala, por exemplo, em caráter cênico e fala também sobre a ideia de morte, experiência de morte que perpassa o teu trabalho. Essas duas coisas estão extremamente ligadas com a ideia de tempo e os tempos das músicas são longos. E o teu trabalho exige um tempo de audição. Que proposta é essa que lida fundamentalmente com o tempo? Formulando de uma melhor maneira, o que vocês pretendem ou o que está em jogo sob o aspecto cênico, sob a ideia de morte num trabalho em que é o tempo, vamos dizer, a grande base de desenvolvimento da música? Que relação é essa dessa música com esse tempo?


MG: Musicalmente falando, existe em nosso trabalho diversos elementos de música erudita, onde o tempo tem funções muito específicas. Agora, se eu for lançar um olhar puramente subjetivo a respeito, poderia desenvolver outros raciocínios. Penso, por exemplo, que as questões humanas sempre foram as mesmas. A morte, a perplexidade diante desse universo insondável, os mais caros e momentâneos prazeres dessa pequena existência, o amor cada vez mais fugidio. Todas elas inseridas em conceitos, filosóficos ou não, a respeito da passagem do tempo. Observamos em nosso trabalho esse homem contemporâneo, fragmentado, despedaçado, sob a óptica de uma tragédia grega. E aí concluímos que as grandes questões continuam sendo as mesmas. O diferencial pode ser a constatação de que talvez a derrocada da humanidade esteja mais próxima. Essas considerações são muito pessoais, você provavelmente desenvolverá outras.


SEM: Você fala em contradição, fala em fracasso, fala em finalizações, em perda, em morte. E eu penso: em que instância na música o silêncio aparece?


MG: Vou me referir especificamente a um dos silêncios, o que foi idealizado em “a piaf”. Nesse caso, o silêncio tanto pode ser em alguns aspectos o descanso necessário para inúmeros gritos, como pode simbolizar também o limbo que provavelmente existe entre a vida e a morte.


SEM: Estar na mesma situação de blake é estar inserido nesse cinema, nessa plástica, nesse movimento e nesse tempo que é a tua música?


MG: Sim, sem maiores elucubrações, creio que sim. Acredito que todas as concepções que tivemos acabaram ilustrando alguns dos significados possíveis desse verso do poema de Fiama, pertinentes à nossa música. Interessante a formulação da pergunta, pois “estar na mesma situação de blake” no contexto que você estabeleceu pressupõe estilo, estado de vida, posicionamento estético ou filosófico, etc. A força do verso, que pertence a um poema extraordinário, pode gerar uma série de interpretações, mas isso eu deixo para o ouvinte atento.


SEM: Eu queria te fazer uma última indagação: interpretar essa música tem um aspecto extremamente particular e complicado de colocação de voz? Se isso passa por uma experiência espiritual e como é isso... se isso é um ritual, se tem um ritual, se tem uma passagem... como é isso?


MG: Na medida em que a música significa para mim uma das poucas possibilidades de transcendência, sim. A vida é transitória, mas espero tolamente que pelo menos esse pequeno vestígio de minha existência possa permanecer. É importante dizer que, acima de qualquer referência artística, a necessidade de conceber um trabalho artístico e interpretá-lo era a única resposta viável para todo o meu desespero. Tento alcançar com isso o que deve estar fora dos meus limites humanos. Com esse enfoque, certamente chegarei à conclusão de que também é uma experiência espiritual. Em relação ao meu canto, quando a circunstância de colocá-lo em prática é especial aos meus olhos, é como se eu pudesse dizer: “Essa é uma das poucas oportunidades de impor o meu grito profundo, infelizmente mudo”.


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