*Sebastião Edson Macedo
encaremos a situação da música: nada acontece no mundo quando um novo trabalho musical chega a seu termo: o álbum. pior: nada acontece quando um novo trabalho musical chega ao público, porque ao público muitos trabalhos simplesmente não chegam. mas há aí um erro de expectativa: não é ao público que deve ser encaminhada uma obra de arte: é o público que deve se deslocar em favor das obras de arte. observe que digo deve, e não digo em direção a elas, primeiro porque não há uma direção a elas, e nunca as encontramos quando a julgamos encontrar, posto que as obras de arte nunca, por sua vez, encontram-se num local fixo, assegurado, transitivo, no espaço do mundo e do espírito, qual supõe nossa comodidade fruitiva, aquisitiva, e seus poderes. e o dever é algo que merece ser levantado como próprio de uma coletividade que só lembra de se arvorar de seus direitos. se o povo tem direito à arte, pergunto que deveres, em contrapartida, esse mesmo povo tem em relação a ela. isso, porque detecto um falso problema crítico praticado em meu tempo, quanto à fastigiosa necessidade da arte.
a questão não é mérito dessa época, claro, mas é nessa época que ela neutraliza seu debate, como se se tratasse de um ponto pacífico, quando, definitivamente, e o trabalho de na mesma situação de blake nos mostra, não o é. se a discussão surgira há tempos muito idos porque o homem não conseguia justificar a criação artística diante de ações imediatamente utilitárias para a vida, era então o homem que, mesmo assim, necessitava da arte. mas, em tempos de indústrias fonográficas, franquias de museu, editoras pague-e-edito etc, as obras acabam por ser transformadas em produtos mercadológicos, e a questão da necessidade, cujo foco era antes o criador, agora é deslocada para um alvo exterior e descomprometido com a questão: o público. é no público que se engendra a necessidade da arte, hoje.
de forma que a arte tem, para respirar sua genuinidade, movimentos e práticas de necessidades outras, em muitos graus diferentes das do público, forjadas estas por interesses de satisfação garantida e prazer imediato: necessidades próximas de um gozo puramente genital, nada reflexivo ou ético, nada social ou pedagógico, nada artístico ou diferencialmente humano, afinal. o artista hoje só é possível na medida em que imprime em sua criação uma necessidade que não é nem o público enquanto alvo, nem a necessidade semelhante a dele. o artista executa uma constrição em sua obra, para forçar a ela deslocamentos, e a partir dela, derivas. tal obra impõe desacomodamentos e imprevisões capazes de instaurar no homem um sentido de possibilidade para essa arte, e retomar, aí, a problemática de sua necessidade.
assim, uma obra que nos deixa como estávamos e onde estávamos, das duas, uma: ou não é arte, e a discussão será a favorita daqueles que tenham com ela pretensões pessoais, comerciais, lobísticas; ou esta obra não assume sua responsabilidade de expressão exemplar de seu tempo, incapaz de acionar o sentido de lugar nos homens e movê-los antes que comovê-los. nesse segundo sentido, a irresponsabilidade existe como descompromisso ético, e transfere-se perigosamente a qualquer um que, numa posição de destaque diante da massa, queira dar partido à esterilidade da arte em tempo real, posição que só se toma em situações de impossibilidade de vislumbre do novo.
mas é contra essa impossibilidade do novo que se situa o trabalho de marcelo gargaglione e luis claudio maffei. na mesma situação de blake cogita, de saída, uma hipótese rapsódica para a música, com a portada de um poema cujas imagens inspiram uma densa, breve e ritualística invocação fadada ao colapso da própria música. numa deriva continuamente peridoxa, essa música vai assumindo, como eixo de desdobramento, o movimento mesmo em torno de uma minuciosa melodia sem retorno, que finge se deixar apreender por uma ligeira audição, como se esta audição correspondesse a um único vislumbre.
de fato, há um jogo entre o registro visual e sonoro proposto pelo trabalho de maffei e gargaglione, que parece ser resultado de uma hiperplasticidade recuperada para a música por força da versatilidade vocal e da pletora de ambientes acústicos. o fragmento sonoro não é ingenuamente uma revelia, mas esteticamente qual janelas nessa música, colaborando para uma amplitude de sua potência, dado o alcance orquestral de seu teor, quando tomado em conjunto. é verdade que o exercício de citação da tradição artística ocidental, recorrente no CD, penetra os arranjos pela via do fragmento, e aí não se trata apenas de uma janela para fora da música, mas um pilar de sustentação daquilo que, continuamente giratório e excessivo, encontra-se à beira da queda e do desmonte. além disso, a citação encontra-se, ela mesma, diluída no trabalho autoral, em estado de bruto deslocamento, despontando primariamente como algo fora de sua situação original, que corresponde, de todo, a um questionamento desse lugar original onde se supõem fixas as obras de arte. esse lugar, é como se nos entredissesse os músicos em maffei e gargaglione, não está garantido por qualquer necessidade elocutória da criação, porque criar nunca é algo inteiramente certo, nem ameno.
nesse sentido, a proximidade que na mesma situação de blake estabelece com o meu tempo ultrapassa em muito a totalidade sinestética lograda pela ópera, por um lado, e o tedioso avesso da narrativa épica, por outro. essa música, embora corresponda a uma demanda filosófica atual, não a questiona: simplesmente pratica sua dúvida diante daquela linearidade canônica que afasta o inclassificável, e confere depois às obras uma aura cuja sagração foi sumaria e contraditoriamente construída por um critério de escape – ou pelo menos de ampla mobilidade – situacional em relação a essa mesma linearidade. trocado em miúdos, essa música pratica uma leitura da tradição que não a toma pela sintaxe da legitimação, mas a incorpora enquanto qualquer coisa situada fora de seu próprio tempo, em busca talvez de encontrar um tempo próprio para a música de agora. nessa medida, o trabalho de maffei e gargaglione insere-se fora do meu tempo, não em função de uma inclassificabilidade do gênero musical, mas fora, antes, e a rigor, pela impossibilidade de estar somente nele.
de forma que a audição de na mesma situação de blake também desencadeia uma experiência sobre o tempo, e os modos de inserção nele. tempo não apenas como índice cronológico, mas sobretudo, e mais uma vez, como lugar em relação ao qual se desloca. é por deslocar-se através das fissuras de temas como a morte, o efêmero, o outro, a dúvida, o amor, e tantos outros, que tal trabalho vai permitindo um mapeamento em ruínas da vasta irmandade para aqui chamada: fiama hasse pais brandão, derek jarman, eugenio montale, richard wagner, jorge de sena, giuseppe verdi, cornélio penna, william blake, edward münch, e por aí se vai aos vários, e o tempo transcende a seu estatuto absoluto, numa jornada em que tudo é dragado como imanente à realidade dessa música.
por essa deriva, volto à situação da música: busco um sentido, um horizonte, em que as obras de arte habitam, sempre temporariamente, uma ideia de tradição, um contexto. aí se colocam o museu e o livro, mas também a sala de cinema, o corpo de baile, o CD, como lugares de um suposto alargamento de possibilidades do humano, seja lá o que este humano tenha de possível. nesse lá, espera-se, o homem é levado sobretudo a modificar sua noção mesma de horizonte, e de seu olhar sobre os lugares das obras de arte que, nesse momento, já serão outros lugares, por certo. e ainda que os modos de apreensão das mesmas obras sejam também outros, é ao delicado ou controverso lugar delas que se move o homem, seja apenas o olhar, seja todo o seu tempo. de forma que a arte situa não apenas suas obras mas, inescapavelmente, todos os homens que com elas se relacionam, não importando mais quem as cria, quem delas se apropria, que apenas as frui.
mais subjetiva que espacial, a situação de blake evocada por fiama evocada por marcelo gargaglione e luis claudio maffei denuncia continuamente uma obra de ação, com horizonte nos eventos intransferíveis da responsabilidade artística: a de relacionar-se com uma pluralidade de cotidianos, com uma imperiosa preguiça emocional, com um palidescente teatro de luzes que tem sido o debate crítico desse tempo. movendo-se e provocando movências seja para o cru, seja para fora do conforto cozido com o que se acostumou alimentar o espírito, na mesma situação de blake cultiva uma flor de estufa: porque toda situação humana é uma glosa desta música, e todo esforço de audição é uma manifestação dos espaços muitas vezes estreitos que essa mesma situação implica. por fim, do cume de meu tempo, repito essa flor de estufa, necessária, possível apenas em pânico e azul, porque a arte crua, ou a obra como alimento do espírito, simplesmente não existe.
ouçamos este CD a frio.
*Sebastião Edson Macedo é Ph.D em Línguas e Literaturas Hispânicas com ênfase em Estudos Luso-Brasileiros pela Universidade da Califórnia, Berkeley. Mestre em Literaturas Portuguesas e Africanas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Recebeu o Prêmio de Instrutor de Estudante de Pós-Graduação de Destaque 2014-2015 na UC Berkeley. Membro do Programa de Estudos Portugueses. Publicou fotografias, traduções, artigos e ensaios em jornais como Lucero, Rascunho, Desenredos, Colóquio Letras, The Berkeley Review of Latin American Studies e Metamorfoses. Publicou traduções de poesias e artigos sobre representações de marginalidade e pobreza na literatura brasileira. Como poeta, publicou três volumes de poesia: cego puro sol (2004), para apascentar o tamanho do mundo (2006) e as medicinas (2010). Interesses de pesquisa: regionalismo; poesia de vanguarda; formas de marginalidade; deslocamento e exílio; infraestrutura e movimentos sociais na literatura brasileira; teoria da tradução.